HOMENAGEM A MARGARIDA GIL


Margarida Gil é um nome incontornável da história do cinema em Portugal feito no feminino, em especial, do pós-25 de Abril. Nascida a 7 de julho de 1950, Maria Margarida Gil Lopes é natural da Covilhã, onde estudou até rumar a Lisboa, em 1968, para ingressar na universidade. Apesar do desejo ser seguir Belas Artes, o gosto pelo desenho e pela pintura era antigo, foi em Filologia Germânica que se formou, na Faculdade de Letras da capital. A vida em Lisboa não foi fácil, tendo que manter diversos empregos para se sustentar, como na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

A proximidade do Palácio da Foz proporcionou-lhe frequentar a Cinemateca, onde assistiu a variadas sessões e conheceu João César Monteiro, com quem casaria e colaborou inúmeras vezes, inclusive na derradeira obra deste «Vai e Vem» (2003). João César Monteiro, em 1998, dedicou-lhe mesmo o seu filme «As Bodas de Deus».

Nesses primeiros anos, conheceu muita gente do cinema e do meio cinematográfico português, tais como Jorge Silva Melo, Solveig Nordlung, Alberto Seixas Santos, Paulo Rocha ou Fernando Lopes, entre tantos outros, e que com alguns destes fundou a cooperativa Grupo Zero.
A sua estreia é com João César Monteiro, como assistente de realização no filme «Fragmentos de um Filme-Esmola - A Sagrada Família», rodado entre 1972 e 1973 e o qual assinou Maria Margarida Gil.

Com a Revolução dos Cravos, em 1974, Margarida Gil encontrava-se a terminar o curso e estava desempregada. Conseguiu uma colocação na Emissora Nacional (hoje Antena 1), fazendo um programa de rádio e colaborando nos noticiários. No ano seguinte volta a ser assistente de realização de João César Monteiro, em «Que Farei Eu com esta Espada?», integrando ainda o elenco de atores.

É em 1975 que entra para a RTP - Radio Televisão Portuguesa, primeiro como colaboradora, depois como realizadora, uma ligação que durou várias décadas. Nesses primeiros tempos, na estação pública realizou vários documentários de cariz militante, próprio da época, tratando da produção aos textos, da locução à montagem. Desses tempos, nota para «Clínica Comunal Popular da Cova da Piedade», «Para Todo o Serviço» ou «Arca de Noé». Em 1980 passa a realizadora oficial da RTP, após um curso de produção/realização. Enquanto realizadora assinou variados programas com personalidades tão díspares, como João Bernard da Costa, Inês de Medeiros, Mário Viegas, Marco Paulo, Júlio Isidro ou Herman José.

Já casada com João César Monteiro, Margarida Gil voltou a trabalhar com o cineasta como assistente de realização e atriz em diversas obras cinematográficas. Em 1986, fundaram a produtora Monteiro & Gil, que viria a produzir o filme de estreia de Margarida Gil na realização, «Relação Fiel e Verdadeira», de 1987, a sua primeira longa metragem de ficção, uma adaptação feita pela realizadora e Luiza Neto Jorge da obra autobiográfica do século XVII «Relação Fiel e Verdadeira que Dá dos Sucessos da sua Vida a Criatura Mais Ingrata ao Criador», de Antónia Margarida Castelo Branco.

Esta primeira obra, na qual também integrou o elenco, foi apresentada no Festival de Veneza, em 1987, e só em junho de 1989 estreou em Lisboa.
Em outubro de 2018, fui contactada por Mariana Liz e Hilary Owen, que me desafiaram para escrever um capítulo sobre Margarida Gil, para o livro que preparavam, sobre realizadoras portuguesas para uma publicação internacional.

O meu conhecimento da obra desta realizadora, na altura, era muito incipiente. Uma das razões por que não conhecia bem a obra de Margarida Gil (teria visto dois, talvez três dos seus filmes), fui percebendo, devia-se àquilo a que chamei no ensaio que escrevi “uma medida de invisibilidade”: era difícil localizar e ver os seus filmes. Na altura, eram quatro os que estavam disponíveis no mercado, ou em DVD ou em plataformas de streaming.

Em DVD, havia o documentário de 2007 sobre Carlos de Oliveira (Sobre o Lado Esquerdo); a série de programas em que Bénard da Costa apresentava oito filmes, No Meu Cinema; alguns programas na plataforma da RTP, que os produzira; Luz Incerta, numa plataforma de video-on-demand. Foi para tentar ver os muitos outros filmes que estavam vedados, a mim e a outros espectadores, que um dia telefonei à Margarida e abalei de Faro para Lisboa. Foi a sua grande generosidade que me permitiu ter acesso à obra quase integral. Na altura, creio que terminava a produção de Mar, que só pude ver depois da escrita do artigo.

Foi esse, pois, o motivo imediato para ter conhecido e estudado os filmes de Margarida Gil: e que oportunidade! Ao mesmo tempo que me apercebia da longevidade, da complexidade e da riqueza da sua obra, mais me surpreendia e indignava o quase silêncio em torno dela – da obra e da mulher. Custava-me (custa-me) convencer-me de que era a sua condição de mulher, precisamente, que a relegava a um lugar de ocultação nos estudos de cinema português. Mas eram cada vez mais óbvias as evidências. A par desta ausência posso imaginar outras e, resultado destas, porções relevantes da história do cinema e da televisão em Portugal estão ainda por conhecer.

Entre os muitos aspectos dos filmes de Margarida Gil, dois me parecem das melhores qualidades na obra de qualquer artista: uma veia de humor que pressupõe um profundo autoconhecimento e, simultaneamente, um olhar benevolente para o mundo – e o amor, que, ecoando essa benevolência, resulta também de uma preocupação social que estrutura o posicionamento estético e ético de Margarida Gil. A denúncia de problemas sociais como os que afligiram (e, em certa medida, afligem ainda) as mulheres durante o tempo da ditadura e na transição para a democracia; qualquer tipo de violência; a causa timorense, símbolo da opressão de seres humanos por seres humanos, que continua a preocupá-la e que se pode ver no equilíbrio entre denúncia e riso no seu mais recente filme.

Gostaria de pensar que a sensibilidade de Margarida Gil vem não apenas da sua experiência no mundo do cinema e da televisão: é também, e talvez de início, o seu contacto apaixonado com o campo literário que desperta o olhar de Margarida Gil para um modo narrativo particular, de proximidade e distância, de consciência dos meios de expressão e das potencialidades das formas (da cor, da música, do trabalho dos atores para a construção de personagens) – a sua capacidade de contar histórias.
Por tudo isto é tão importante dar a ver a obra de Margarida Gil, suscitar a análise dos filmes, ativar a crítica que os mantém vivos. Por eles, por ela, mas sobretudo por nós.


Ana Isabel Soares,
Doutorada em Teoria da Literatura pela Faculdade de Letras de Lisboa (2003), onde, em 2009, completou uma investigação de pós-doutoramento sobre cinema português e poesia. Leciona desde 1995 na Universidade do Algarve, onde é Professora Auxiliar.

Tal como em edições anteriores, o Porto Femme homenageia as mulheres-cineastas que se destacam ou destacaram no panorama cinematográfico.
Nesta 4ª edição homenageamos Margarida Gil uma das mais conceituadas realizadoras portuguesas com a entrega do prémio Mulher-Cineasta.
Nesta sessão, o público poderá assistir ao filme “Relação Fiel e Verdadeira”, seguido de uma conversa com a realizadora moderada pela Ana Isabel Soares.