Um olhar sobre a 5ª edição


De 7 a 12 de Setembro de 2022, o festival de cinema feminista Porto Femme realizou-se no Porto, pela quinta vez. Mais de 80 filmes foram exibidos em várias salas de cinema e associações culturais de toda a cidade, convidando-nos para experiências cinematográficas, conversas, workshops e networking. Seguem-se reflexões partilhadas sobre esta última edição do festival, uma selecção de filmes e cinema feminista contemporâneo.
 
 

PERSPECTIVAS QUEER

A abertura da 5ª edição do Porto Femme estabelece um tom político para o festival ao dar palco aos Kings of Kitéria, um colectivo que une Drag Queens no norte de Portugal. Repensando e negociando a masculinidade, levantando questões sobre as diferentes possibilidades que surgem quando as mulheres ocupam lugares normativamente considerados masculinos.
“Entreter com responsabilidade” é o slogan aclamado pelos Drag Kings - o que pode significar, entre outras coisas, que uma imagem de Bolsonaro acaba por ser rasgada em pedaços e empurrada para dentro de umas cuecas.

Outra introdução é feita por este kick-off: a edição deste ano do festival abriu-se aos participantes queer do campo. Com a categoria XX Elenet, cineastas que se identificam fora do binário de género foram apresentados para mostrar o seu trabalho. A categoria temática Corpos também convidou perspectivas transfeministas e interseccionais e levantou questões sobre a coletividade e singularidade dos corpos, assim como múltiplas perspectivas sobre manifestações de corpos na e através da arte cinematográfica.
A cineasta Monika Konarzewska, vencedora desta última categoria, com o documentário No Makeup, continuou o tema de abertura de Drag. Junta-se a várias drag queens e mostra intimamente as suas relações pessoas com a drag durante o processo de maquilhagem para as suas performances. Identidades, estéticas, ludicidade, emoção e catarses são ilustradas na esfera íntima do camarim, bem como numa mesa amplamente colocada na costa agreste e cénica da Islândia.


PRAZER FEMININO

A afirmação da própria sexualidade tem sido um tema chave do cinema feminista. O filme de animação premiado Sex Relish (A solo orgasm) de Ananda Safo retoma a estigmatização da masturbação feminina e apresenta diversas histórias de mulheres com os seus próprios corpos, a sua paixão e as suas experiências de prazer.
Embora as histórias de mulheres sejam sem dúvida importantes, sensivelmente pessoais e com nuances, a animação tendeu para imagens limpas e salubres. Desejei por uma abordagem que se atrevesse a arriscar mais e a envolver-se reflexivamente na procura de estética que falasse do desejo feminino nas suas formas complexas, muitas vezes confusas.

Inspirada por uma conversa com um co-convidado num hostel sobre uma intoxicante picada de ouriço-do-mar, o filme da realizadora Lucienne Venner, Silent Heat, explora a fantasia e o desejo feminino através de uma narrativa mitológica subaquática. Entre o vídeo musical e o filme experimental, a nova estética pop da canção temática epónima é espelhada na paleta de granulado e cores de ser gravado em filme. A coreografia foi inspirada por várias criaturas marinhas e leva o espectador a um lugar onde o afastamento, a sensualidade e o desejo sexual coincidem.


STORYTELLING

Dois filmes que se destacaram para mim, devido às suas abordagens narrativas, são “Tchau tchau” e “A Fairy Tale”. A curta-metragem de Cristèle Alves Meira, Tchau tchau, mobiliza intrinsecamente a estética e a dinâmica da comunicação digital que viemos a conhecer como colectivo durante a pandemia da Covid-19, a partir da perspectiva de uma criança. Amorosamente e com grande atenção aos absurdos e momentos cómicos da comunicação online e à tragédia humana da morte (pico no funeral de zoom do amado avô), Alves Meira conta uma história íntima sobre perda e ligação.

Devido à câmara em movimento e às conversas entre o cineasta e a protagonista Coco, A Fairy Tale aspira a um estilo documental que é desafiado pelos visuais nítidos, limpos e coloridos. A revelação da construção da narrativa não prejudica a realização direta do filme por Zoé Arene, que faz um passeio intenso de montanha-russa pela cidade de Bruxelas. Coco é uma jovem mulher cuja vida é ditada pelo abuso do álcool e da droga e que afirma ser uma fada que foi contratada pelo "reino". Sentindo-se abandonada, ela é, cada vez mais, levada à autodestruição. Sem nunca ser demasiado literal em quaisquer metáforas provocadas e com uma ambiguidade lúdica, Arene levanta questões de comunidade, exclusão, dependência e a autonomia de decisão sobre a própria morte.
 
 

QUESTÕES DE CUIDADO

Concorrendo na Competição Nacional foi celebrado o filme de animação O Homem do Lixo de Laura Gonçalves. A animação por computador em tons de azul mudo e amarelo assemelha-se a um estilo desenhado à mão e dá espaço para nuances. Durante um jantar de família, histórias sobre o bisavô falecido são partilhadas pelos seus familiares. Anedotas humorísticas pessoais de ananases, acontecimentos que mudam a vida, como a fuga para França durante os tempos da ditadura e a sua participação na guerra colonial em Angola, entrelaçam a história e a biografia nas suas inimagináveis existências.

As relações familiares são fundamentais também para The Ones Left Behind, uma curta-metragem vencedora da Competição Nacional. No palco principal está uma mulher que tem de cuidar da sua mãe demente, uma vez que está a ser deixada sozinha nesta tarefa pelo resto da sua família, particularmente pelo seu irmão. O filme de Aurélie Oliveira Pernet é dedicado ao trabalho de cuidado invisível que é realizado diariamente pelas mulheres. Mas não se trata de forma alguma de uma história de vitimização: na sua luta e solidão a protagonista é movida tanto pelo desejo como pela raiva; acabando por enfrentar o seu próprio poder e radicalidade.


A REALIZAÇÃO DE FILMES FEMINISTAS HOJE

Qual é hoje o papel de um festival de cinema feminista? Promover a narrativa e a estética feministas; criar espaços para debates sobre a política do cinema; criar redes internacionais com outros festivais e cineastas; renegociar o que o cinema feminista pode significar quando inscrito em debates interseccionais; construir novas audiências; apoio às mulheres na indústria e às próximas gerações de cineastas. Os desafios são múltiplos.

As estruturas e condições que continuam a influenciar a indústria cinematográfica - não só em Portugal - actualmente, ou seja, as estruturas de financiamento, educação e produção, estão enraizadas nos sistemas patriarcais e prejudicam as mulheres, bem como as pessoas não binárias e trans, os negros e as pessoas de cor. Emblemática desta luta é a fundação de associações como MUTIM (Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento) por Paula Miranda que visa promover a igualdade das mulheres no seio da indústria cinematográfica e audiovisual. Durante o festival, as posições das mulheres em frente e atrás das câmaras foram explicitamente envolvidas nas oficinas Criação de Mundos - Direcção de Arte liderada por Mónica Santos e Mulheres no Cinema e Audiovisual através do Look of the Script & Editing com Paula Miranda e Fernanda Polacow; oferecendo aos atuais profissionais do cinema internacional espaços de diálogo, reflexão e criação. São necessárias mais iniciativas que promovam a inclusão e a igualdade, uma vez que a diversidade tem de ser a própria condição subjacente a partir da qual criamos filmes dentro e para sociedades mais justas.

O filme de abertura No silêncio de um mar abismal de Juliette Klinke é uma contemplação sobre o apagamento das mulheres da história do cinema. Uma montagem de cenas de filmes realizados por mulheres no final do século XIX e início do século XX apresenta um arquivo reprimido, narrado pela viagem pessoal da cineasta para traçar a sua própria história dentro deste “oceano”.

Em parte em homenagem às mulheres cineastas excepcionais, em parte em exclamação para não esquecer e refazer a tremenda influência das mulheres na produção cinematográfica, este filme desencadeia uma outra visão sobre os festivais de cinema feministas, um novo fundamento que se poderia dizer: as mulheres sempre desempenharam papéis cruciais na indústria cinematográfica e na arte do cinema como realizadoras, editoras, figurinistas, etc. É uma história de continuação, mas de luta contínua, que precisa de ser contada. Com novos desafios pela frente e exigências importantes sobre perspectivas interseccionais no cinema feminista, estou entusiasmada por, uma e outra vez, repensar convosco a história, o presente e o futuro do cinema.

BIOGRAFIA da Melina Scheuermann:

Melina Scheuermann (ela/dela) escreve e pensa sobre cinema, artes performativas e educação artística, com enfoque nas perspectivas interseccionais.

Ela tem experiências em educação teatral, educação política e produção de filmes documentários.

A sua formação académica é em Estudos Culturais e Estudos Cinematográficos, este último estudou no seu mestrado na Universidade de Estocolmo.

Atualmente, é investigadora na pós-graduação em Educação Artística na Universidade do Porto e no instituto de investigação i2ADS - Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade.