HOMENAGEM A ADELAIDE TEIXEIRA


A mulher monumental




- Valter Hugo Mãe

Reparei na Adelaide Teixeira pela sua figura ancestral, um jeito meio antigo e escultórico, como se fosse uma mulher trazida da pedra, a mexer-se pela mágica de encantar uma pedra, e tivesse sempre uma robustez impressionante, como as coisas que não se abatem e resistem sem fim. Uma mulher como as dos filmes. Era inteiramente uma mulher como são as dos filmes.

Por isso, ela andava com o Manoel de Oliveira e, como julgo ser fácil de entender, num só minuto marcava qualquer obra. Era como passar uma pequena multidão, tão grande a sua força, tão peculiar o seu jeito. Não servia nunca de pessoa singular, sozinha, alguém que não lembraríamos de contar. A Adelaide Teixeira entra em todos os filmes com uma presença única mas que lhe deita aos ombros uma vastidão de outras mulheres. Ela é a figura de muitas mulheres, lembra o trabalho e a sobrevivência, lembra a necessidade e o engenho, o gesto para o cuidado ou para o amor, tanto quanto o erro que se comete. E tem sempre pulmões, uma respiração a acontecer como se uma mulher de pedra respirasse. Como se a multidão respirasse. Soa-me a um ritmo marcado pelo esforço, uma musicalidade trazida de dentro do que é surdo, não se escutava antes. A Adelaide Teixeira é a representação de tanta gente que normalmente não tem voz, não tem vez, traz em seu poder a bandeira dos que mais precisam, dos que mais existem à míngua de um sonho, de inclusão, de participação.

Eu não sei como começou, mas quando o Luís Vieira Campos ou o Rodrigo Areias quiseram fazer filmes com textos meus a minha única exigência foi que estivesse a Adelaide Teixeira, e ambos amam a Adelaide e ela fez papeis lindos e ganhou prémios por eles, e eu fiquei tão vaidoso que ainda hoje tenho a mania.


É vasta a experiência da Adelaide Teixeira no cinema, e é sempre encantada. Quero dizer, nunca partiu para um filme sem ser como quem vai à maravilha. Vejo-a nesta alegria uma e outra vez. Prepara-se para os filmes com mala e bilhete só de ida, como quem de facto viaja numa esperança enorme, e há nela uma gratidão por a chamarem, por a quererem, que se ilumina inteira em sua luz própria, como acontece às pessoas quando coincidem com o seu mais profundo sentido da vida.

Além de Oliveira ou Vieira Campos e Areias, a Adelaide Teixeira trabalhou com tantos outros criadores, como Rita Azevedo Gomes, Margarida Gil, Edgar Pêra ou André Gil Mata. Se é apetecível para os papeis mais tradicionais, a apelar a essa coisa de face antiga, esse busto de uma dignidade férrea, também é verdade que é uma das mais frequentes figuras de Edgar Pêra e seu cinema do futuro ou do sem-tempo do pensamento, um cinema que é inteiramente sinapse, casamento entre fúria e folia, espécie de vislumbre da velocidade e da perdição. Admiro muito que a Adelaide Teixeira circule enquanto livre, sem qualquer preconceito, porque ela é profunda generosidade.


Alguém apresentava o caso da Adelaide Teixeira para debater a resiliência e a alegria em participar e assistir. Respondi que a Adelaide, simplesmente, não é normal. O que quer que ela represente é muito acima do comezinho dos mortais. Ela está mais para ser estudada pela NASA, pela CIA, pela Comissão Europeia, pela Coreia do Norte ou pela equipa da TESLA. Não vai ser aqui pelas redondezas que se poderá descortinar que ímpeto acontece a esta mulher, que bravura inesgotável lhe nasce, que motivação há para tantas ganas de justiça e paridade, arte e beleza, lisura e amizade.

A Adelaide Teixeira é o exemplo mais exuberante de alguém que não se detém diante de cansaço algum. Quantas vezes sem juízo, a recuperar de alguma operação ou outro fanico de saúde qualquer, ela enfrenta ainda assim o intrincado dos transportes públicos e comparece nas plateias de todos os eventos, igualmente maravilhada, maravilhosa, disponível para aprender nem que mais um verso de mais um poema que sirva só de sorriso por um instante. Eu, que já vi oitenta países e até inventei livros, nunca vi alguém com oitenta anos a parecer que começa tudo a cada dia. Como se andasse numa infância que não acaba e isto ainda estivesse tudo para lhe pertencer. Julgo que é o mais fascinante da Adelaide Teixeira, é que isto tudo ainda lhe pertence. Não adia, não abdica. Ela está vigente e torna-se fundamental na dignidade, no prestígio, dos eventos que acontecem.

Estou a defender que a Adelaide Teixeira é uma mulher monumental. Ela já não se significa apenas a si mesma, ela é este colectivo onde nos incluímos todos. Está entre nós enquanto pluralidade magnífica que nos orgulha e nos motiva. Representa-nos. Quando quisermos dizer quem somos, podemos simplesmente dizer que somos os de Portugal, os de Fernando Pessoa, os de Aurélia de Sousa, os de Fernando Lopes Graça, os de Adelaide Teixeira.

Valter Hugo Mãe
Nasceu em 1971, na cidade angolana de Saurimo. Passou a infância em Paços de Ferreira e vive em Faria, Barcelos. Licenciou-se em Direito e é pós-graduado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea.
Valter Hugo Mãe é um dos mais prestigiados autores portugueses da atualidade. A sua obra é editada em diversos países, com destaque para o Brasil, Alemanha, Croácia, Colômbia, Espanha e França. Publicou nove romances, vários livros ilustrados e de ficções curtas.
Assina crónicas na Notícias Magazine e no Jornal de Letras.
Recebeu alguns dos principais prémios literários da Língua Portuguesa.