UM OLHAR SOBRE A 3ª EDIÇÃO
Regresso ao lugar da nossa infância: Reflexões sobre a Curta “Selma Depois da Chuva”
A curta “Selma Depois da Chuva” fez-me revisitar muitas das narrativas de pessoas trans (i.e. pessoas cujo sexo atribuído à nascença não corresponde ao género pelo qual se identificam) sobre as suas infâncias e sobre o processo da sua afirmação de género/autodeterminação. Ressalvando as histórias plurais e a recusa de uma narrativa de história única, gostaria de contar um pouco (da interpretação que esta curta me despoletou) das muitas histórias de vida de pessoas trans.
Esta curta começa com uma viagem, uma viagem de regresso ao lugar da sua infância, para acolher/ir buscar a mãe que outrora a excluiu/negou a sua identidade.
Fez-me pensar, inclusive, na expressão que “um/a bom/boa filho/a à sua casa torna” (ilustrado várias vezes na curta, “fui eu que consegui ficar e ir embora”). É tão difícil desvincular da infância para muitas pessoas trans, apesar das múltiplas violências que passam em vários contextos, especialmente no contexto familiar: é-se expulso/a, é-se maltratado/a, mas quando os/as pais/mães adoecem regressam, porque nunca partiram, especialmente pelo sentimento e necessidade de aceitação do outro. Não são apenas as pessoas trans que procuram a aceitação das outras pessoas, uma grande parte de nós (para não dizer todos/as) deseja ser apreciado/a, deseja se sentir pertencente a um lugar, sentir afeição, pertencimento e tendemos a agir em prol da apreciação/aceitação das outras pessoas, especialmente das que nos são significativas. Este processo de desejar que nos apreciem, que gostem de nós dá-nos sentido à nossa própria existência e tudo isso é legítimo, no entanto em prol dessa mesma aceitação há quem deixe de ser o que é. Até onde estamos dispostos/as a ir em nome da aceitação dos/as outros? Quando a Selma chega a mãe pergunta: “o Nelsinho não veio?”. Esta pergunta reforça mais uma vez a negação da identidade da filha. Essa negação não está apenas no questionamento, mas também em todo o regresso ao seu passado, através de um quarto de infância com fotos de uma identidade não reconhecida.
Há um pai ausente na curta, mas muito presente no discurso da mãe, um pai punitivo/violento, retratado por múltiplas violências sobre Selma na infância, uma das “mais dolorosas”, a violência de não existir.
A mãe de Selma revolta-se com Deus e questiona Selma: “Eu fiz mal para você?” O silêncio de Selma denuncia a violência constante na infância – de um lugar de não pertencimento e, de mais uma vez, do não reconhecimento da sua identidade.
A banda sonora também retrata o sofrimento e a tristeza na/da infância, o quanto aquele lugar a obriga a calar.
A mãe pergunta a Selma: “O Nelsinho morreu?” [ele não morreu, nunca existiu, sempre foi Selma, as pessoas trans não deixam de ser, serão sempre o que elas se identificam]. A chuva transforma-se num “grito de Ipiranga”, num grito que não quer mais calar, tal como ilustra a música “Eu quero sair, eu quero falar!”. A mãe observa Selma na chuva e depois da chuva a mãe diz: “A gente não conta nada para o teu pai”.
Depois da chuva há uma viragem no processo de aceitação da mãe, ilustra um momento de lucidez afetiva [com um olhar cúmplice, ajeita a blusa da filha]. Após a chuva saem as duas de casa – iniciam a viagem – fecham a porta de uma infância de sofrimento e de não reconhecimento da uma identidade. Inicia-se uma viagem de acolhimento, de afeto e de pertencimento. E se esta curta teve um final feliz [uma grande parte das vidas de pessoas trans não têm a possibilidade de fazer as pazes com o passado] que muitas vidas de pessoas trans tenham inícios e finais felizes! Que possam existir como quiserem. Para tal, precisamos de construir sempre redes de afeto e práticas de cuidado. Só as práticas de afeto são revolucionárias, porque são feitas de resistência e de solidariedade!
Liliana Rodrigues
Investigadora Integrada do Centro de Psicologia da Universidade do Porto (CPUP). Doutorada em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e Mestre em Psicologia da Justiça pela Universidade do Minho.