UM OLHAR SOBRE A 4ª EDIÇÃO

Em dívida para com Todas as Mulheres


Em dívida com todas as Mulheres leva-nos para dentro de uma casa em El Salvador, onde observamos mulheres na cozinha enquanto conversam casualmente, riem entre si e preparam uma refeição. O tom da conversa eventualmente muda; logo percebemos que essas mulheres são vítimas de estupro, assim como ex-presidiárias. Mas porquê? Porque uma vítima de estupro acabaria na prisão? A primeira entrevista direta para a câmera segue esta cena, onde Teodora Vasquez expressa a pergunta nas nossas mentes: “Eu nunca pensei que iria para a cadeia”. Em locução, uma transmissão da Rádio de Todas, a primeira rádio feminista de El Salvador, e sinaliza que esse não é um problema raro, mas que há muitas mulheres no país que estão presas com penas de até 30 e 40 anos. Depois de ouvir dois encarcerados sob a acusação de “tentativa e homicídio qualificado” por um crime que dizem ser “imperdoável até mesmo por Deus”, a emissora situa-nos dentro da questão que será abordada pelo documentário: “a criminalização absoluta do aborto e as suas consequências na vida das mulheres”.

Em El Salvador, o aborto é criminalizado por todos os motivos desde 1998. Mesmo que a vida da mãe esteja ou não em perigo, se a gravidez resultou de estupro, aborto espontâneo ou complicações médicas, o aborto é inacessível para as classes mais pobres da sociedade, pois não podem viajar para o exterior para obter um legalmente. O documentário enquadra esse facto como a negação de um direito humano e constrói o seu caso por meio de excertos factuais fornecidos por entrevistas com indivíduos envolvidos na luta contra essa lei. Ativistas, advogados, políticos e médicos compõem o pano de fundo contextual, enquanto entrevistas e cenas de estilo observacional fazem ouvir as vozes das mulheres – as que ainda estão atrás das grades e as que foram absolvidas. Os cineastas María Lobo e Roi Guitián tecem essas entrevistas para fornecer uma imagem do impacto direto da lei na realidade das mulheres afetadas por ela.

Os profissionais que lutam contra a criminalização do aborto reiteram a discriminação de classe a que as mulheres são submetidas no país, situando a lei como um problema que só diz respeito às pessoas pobres. Como um profissional médico afirma: “Nenhuma mulher rica está presa”. Quanto às mulheres – elas compartilham as suas experiências com toda a franqueza, clareza e detalhes surpreendentes, retratando a crueldade com que foram tratadas pelas autoridades. Nas suas memórias, lembram-se da chuva. Como tal, a chuva é utilizada como um tropo visual ao longo do filme em relação a esses testemunhos, criando um forte sentido de identificação entre a memória vivida das vítimas e a realidade do filme.

As mulheres também falam sobre as consequências de tais acusações e o estigma que as acompanha. Em primeiro lugar, há o tabu social relacionado com a perda de um filho. Esse tabu está enraizado nas estruturas de poder que operam dentro de uma sociedade muito patriarcal e conservadora, repleta de mitos em torno da maternidade como o principal, senão único, papel que as mulheres devem cumprir. Tais crenças são propagadas pelo discurso fundamentalista da Igreja Católica contra os direitos humanos em todo o país. Em segundo lugar, o medo da estigmatização tem levado a casos de suicídio e em consequência relaciona-se a adolescentes grávidas. Esta seção do documentário incorpora mais informações por meio das entrevistas, mas também por meio de textos na tela. Trata-se de uma estratégia visual eficaz, pois os números de gravidez na adolescência, agressão sexual e punição são impressionantes, levando-nos a uma conclusão singular e urgente: a lei deve mudar.


A transmissão radiofônica é utilizada como dispositivo comunicativo ao longo do documentário, chegando das imagens da vida da cidade ao mesmo tempo em que transmite informações, culminando num apelo à ação contra o controle patriarcal sobre os corpos das mulheres. De facto, a força através da unidade torna-se o objetivo final, pois o clímax do filme é composto por uma montagem de imagens de protesto recortadas com música de protesto, destacando a importância de transformar a raiva em ação e tornar-se visível na esfera pública para exigir direitos. Somente através da solidariedade em ação, os resultados podem ser alcançados – seja nos tribunais ou na rua, a esperança vem dessa unidade. Aliás, o caso de Teodora Vasquez exemplifica esse argumento do documentário, que nos é apresentado desde o início do filme. Ela é uma das 17 mulheres que foram condenadas até 40 anos de prisão como resultado de um aborto espontâneo. A campanha pela liberdade de Vasquez finalmente alcançou resultados 10 anos após seu encarceramento inicial, graças à luta coletiva e pressão exercida sobre as autoridades e conscientização criada globalmente.

Lobo e Guitián levam a sua missão ativista aos princípios da exibição, com o filme sendo aberto para visualização, gratuitamente, online (1). Num momento em que o direito ao aborto está a ser contestado, mesmo em países ditos democráticos do norte global, como no recente caso da reversão oficial da Suprema Corte dos Estados Unidos de Roe v. Wade, este documentário é obrigatório, lembrando-nos que a luta das mulheres em todo o mundo é a nossa luta também, e é somente por meio de redes internacionais de solidariedade que a derrota dos preconceitos ideológicos pode ser realizada.